XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006
Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM
págs= 638 -639-640-641
Quando a flauta fala: uma exploração das amplas possibilidades de
articulação na flauta doce
Patricia Michelini Aguilar
Mestranda pela UNICAMP/ Professora da Fundação das Artes de São Caetano do Sul
e-mail: patricia@ildolceballo.com
Sumário:
Trata-se de um estudo do processo de articulação na flauta doce tendo como base a fonética do idioma
português. Os assuntos abordados são: (1) o estabelecimento de uma definição de “articulação” para a
prática da flauta doce e (2) uma descrição das consoantes da fonética portuguesa possíveis de serem
executadas neste instrumento. Este trabalho faz parte de pesquisa em andamento sobre a adequação
das sílabas de articulação indicadas nos tratados históricos italianos de Ganassi e Bismantova à
fonética da língua portuguesa. A metodologia empregada se baseia na análise das fontes bibliográficas
e na experiência pessoal da autora como flautista doce.
Palavras-Chave: Flauta-doce – Articulação – Língua – Técnica – Interpretação
Introdução
A flauta doce, assim como todo instrumento musical de sopro, necessita da ação dos
órgãos articuladores da boca para realizar com precisão os ataques, agrupamentos e finalizações dos
sons que constituem uma obra musical. Por ser um instrumento que é posicionado internamente na
boca do intérprete favorece o uso de uma grande variedade de combinações de consoantes e vogais;
o uso consciente deste recurso resulta num toque que se assemelha a um discurso, uma “fala”
musical. Apesar disso as particularidades do processo de articulação na flauta doce não são
abordadas de forma clara na grande maioria dos métodos existentes em língua portuguesa1. Isso se
deve, no nosso entender, entre outras razões, ao fato de serem em sua maioria destinados às crianças
e, portanto, buscarem uma linguagem simples e acessível, sem explicações detalhadas sobre a
técnica do instrumento. A consulta a métodos estrangeiros para o trato deste assunto deve, por outro
lado, ser vista de forma reticente, pois a escolha das sílabas de articulação está intimamente
relacionada à lingua materna do intérprete.
A presente comunicação pretende esclarecer algumas questões sobre o processo de
articulação na flauta doce tendo como base a fonética do idioma português falado no Brasil. Os
assuntos aqui abordados serão: (1) o estabelecimento de uma definição de “articulação” para a
prática da flauta doce e (2) uma descrição das consoantes da fonética portuguesa possíveis de serem
executadas neste instrumento. Este trabalho faz parte de pesquisa em andamento sobre a adequação
das sílabas de articulação indicadas nos tratados históricos italianos de Ganassi e Bismantova à
fonética da língua portuguesa. A metodologia empregada compreende a seleção, leitura e análise de
fontes bibliográficas e a observação a partir da experiência pessoal da autora como intérprete da
flauta doce.
1 Constatamos esta característica nos métodos de flauta doce de Akoschky-Videla (1985), Frank (2002), Mahle
(1959), Monkemeyer (1976), Prosser (1995) e Tirler (1988).
1. Definição de “articulação” para a prática da flauta doce.
Para Reiss (1986: p.144)2 articulação é “a maneira como uma nota é iniciada e terminada”.
Embora bastante compreensível e abrangente, esta definição nos parece muito simplificada diante
da complexa ação dos órgãos articuladores situados na boca. O conjunto destes órgãos, conhecido
como articulador, compreende a úvula, véu palatino, palato, maxilares, dentes, alvéolos, língua e
lábios.
A fim de melhor entendermos o mecanismo da articulação na flauta doce, faremos uma
breve descrição do funcionamento do instrumento e do aparelho fonador humano para a emissão do
som.
O som na flauta doce se dá através da vibração do ar que foi gerado pelo intérprete. A corrente de ar advinda dos pulmões, expirada pela ação dos músculos respiratórios, é passada para a flauta doce e lá encontra um obstáculo, o bisel, presente na cabeça (apito) do instrumento. O ar passa então a vibrar, gerando o som. Há, entretanto, uma vibração anterior que acontece quando o ar passa pelas pregas vocais3 situadas na laringe do intérprete. “Ao vibrarem, as cordas vocais produzem o tom laríngeo (fundamental) e as demais vibrações múltiplas (harmônicos), que têm características acústicas que os distinguem e que estão na dependência da amplitude e da frequência das vibrações” (Silveira, 1982: p.16). A intensidade destas vibrações regula a intensidade da fala ou do canto. Se a pressão do ar na passagem pelas pregas vocais estiver muito reduzida, a baixa vibração delas resultará em sons sussurrados. É este o tipo de som utilizado para tocar flauta doce, ou seja, não é necessário vocalizar o som (a menos que isto seja solicitado como um recurso expressivo adotado pelo compositor).
A função dos órgãos articuladores presentes na boca é oferecer uma certa obstrução a esta onda vibratória; o afastamento e encontro destes órgãos gera relações de abertura e estreitamento do canal bucal, modificando o formato da onda vibratória e gerando cada tipo de consoante. A vogal utilizada em conjunto com a consoante irá garantir a sustentação do som e, dependendo de sua maior ou menor abertura, ajudará na emissão de notas agudas ou graves. O ar que chega na flauta doce é portanto modificado pela ação das pregas vocais e dos articuladores. O controle da pressão do ar e deste mecanismo articulatório é responsável pelas características do som de cada intérprete.
Para a prática musical, o objetivo da articulação é definir os inícios e finais de cada um dos
sons, bem como possibilitar agrupamentos através de suas combinações. Nesse caso a articulação
passa a ser um recurso expressivo, podendo determinar o caráter da interpretação. A importância
deste recurso é atestada pela preocupação que os compositores e teóricos musicais tiveram ao longo
da história em registrar a forma como uma obra deve ser articulada, seja através de descrições das
sílabas de articulação (instrumentos de sopro), arcadas (instrumentos de arco) e dedilhados
(instrumentos de teclado e cordas dedilhadas), seja através da indicação de sinais musicais
específicos (ligadura, staccato, tenuto, etc.). Na medida em que deve se adequar à interpretação de
obras musicais de diferentes períodos históricos, a articulação passa a ser um recurso estético para a
performance musical.
Baseando-se nas colocações acima, podemos definir articulação para a prática da flauta
doce como uma combinação de ações dos órgãos articuladores da boca que irão determinar os
ataques (inícios) e desfechos dos sons musicais tendo como objetivo explicitar ou valorizar o padrão
estético da obra.
2 Todas as citações originalmente em inglês foram traduzidas para o português pela autora.
3 O termo “pregas vocais” tem sido utilizado mais recentemente em substituição a “cordas vocais”, por sua melhor adequação às características destes órgãos.
4 Alvéolos são as cavidades que recebem os dentes.
2. Descrição das consoantes da fonética portuguesa possíveis de serem
executadas na flauta doce.
Como vimos, no processo de articulação da flauta doce as consoantes definem os ataques
(inícios) e defechos dos sons ao passo que as vogais determinam a sustentação deles. Por ser este
um assunto que demanda uma explanação detalhada, restringiremos este trabalho à abordagem das
consoantes.
Silveira (1982) classifica as consoantes da fonética portuguesa da seguinte forma: (a)
quanto à laringe: surdas ou sonoras; (b) quanto à faringe: orais ou nasais; (c) quanto ao ponto de
articulação: uvular, línguo-velares, línguo-palatais, línguo-alveolares, línguo-alveolares dentais,
lábio-dentais e bilabiais; (d) quanto ao modo de articulação: oclusivas, constritivas e africadas.
Tomaremos inicialmente como base a classificação quanto ao ponto de articulação, podendo assim
descartar aquelas que ficam inviáveis de serem executadas no instrumento pelo impedimento da
ação dos lábios: as lábio-dentais [f] e [v] e as bilabiais [p], [b] e [m].
As articulações mais adequadas para a prática da flauta doce são as línguo-alveolares
dentais [t] e [d]. Nestas consoantes a ponta da língua toca entre os alvéolos4 e dentes superiores,
obstruindo momentaneamente a corrente de ar; repentinamente os órgãos se separam, produzindo o
efeito acústico de uma “explosão”, determinando os inícios dos sons com nitidez. A agilidade da
ponta da língua contribui para a precisão no ataque. Posicionando-se a língua para articular estas
consoantes, mas sem pronunciá-las de fato, obstruímos a corrente de ar e determinamos os finais
dos sons. Assim se articularmos [tut] ou [dut] ou ainda [dud] teremos início e final do som com
definição. A consoante [n], que também é línguo-alveolar dental, não se adequa à flauta doce por
ser nasal, ou seja, permitir a passagem da corrente de ar pelo nariz. Sobre a diferença entre [t] e [d]
falaremos adiante.
A consoante uvular [r], obtida a partir da vibração da úvula e que soa como se
estivéssemos limpando a garganta, não é adequada para a flauta doce, a menos que se busque um
efeito não convencional de um som “sujo” e sem nitidez de ataque. Das consoantes línguo-palatais,
aquelas em que a parte média da língua toca o palato médio, como em [s] com som de [ch], [z] com
som de [j], [l] com som de [lh] e [n] com som de [nh], a única possível de se realizar na flauta doce
é [lh]. O resultado é uma articulação sem muita nitidez de ataque, mas que, realizada
continuamente, proporciona fluidez em passagens legato.
As consoantes línguo-alveolares são aquelas em que a parte anterior da língua toca a região
alveolar. Compreendem [r] (como em aro), [r] (como em “rrrua”), [s] (como em sítio), [z] (como
em azul) e [l] (como em luz). As consoantes [s] e [z] são sibilantes, por isso não se adequam à flauta
doce (da mesma forma que as [s] e [z] línguo-palatais, descritas anteriormente). O [r] (como em
“rrrua”) funciona como um vibrato de língua, efeito chamado frulato, utilizado pelos compositores
contemporâneos. O [r] (como em aro) é uma articulação muito adequada, especialmente se
combinada com [t] e [d]. Seu ataque é impreciso, porém em combinação com [t] ou [d], como em
[turu] ou [duru], torna-se uma sílaba átona e fluida, bastante adequada à estética “forte-fraco” da
música barroca. As consoantes [l], [lh] e [r] (como aro) são, segundo a classificação quanto ao
modo de articulação, constritivas líquidas, ou seja, obstruem parcialmente a passagem da corrente
de ar. Elas se situam entre as consoantes oclusivas (total obstrução da passagem da corrente de ar) e
as vogais (passagem livre da corrente de ar). Dessa forma, permitem, combinadas a uma vogal, um
som quase constante, sem interrupção.
A combinação de [l] e [r] (como [luru]) funciona bem em passagens rápidas em grau conjunto, resultando numa articulação muito ligada.
As consoantes línguo-velares [k] e [g] (como gota), obtidas quando a parte posterior da
língua toca o véu palatino, obstruindo a passagem da corrente de ar, funcionam bem na flauta doce.
Por não utilizarem a ponta da língua, quando combinadas com [t] e [d] proporcionam um “revezamento” do ponto de articulação da língua, dando a ela muita agilidade. Estas combinações
(como [tuku] e [dugu]) soam de forma muito precisa e são eficientes em passagens extremamente
velozes.
A diferença entre [k] e [g], assim como a de [t] e [d], é que [k] e [t] são consoantes surdas,
ou seja, realizadas com a glote aberta (pregas vocais separadas), enquanto [g] e [d] são sonoras,
realizadas com as pregas vocais unidas. As consoantes surdas permitem a passagem da corrente de
ar até os órgãos articuladores sem nenhumas obstrução. Greenberg (1983) nos diz que prefere as
consoantes surdas para a prática da flauta doce porque:
1) A vibração das pregas vocais requer um certo aumento da pressão de ar dos pulmões para
se iniciar. O ar reservado nos pulmões do intérprete é assim mais facilmente esgotado.
2) A ação das pregas vocais tende a interferir na continuidade da corrente de ar dos pulmões
para o instrumento, assim reduzindo a habilidade do intérprete em controlar a corrente de ar
com seus músculos abdominais;
3) A pronúncia das consoantes sonoras na flauta doce pode ser ruidosa o suficiente para
interferir na boa entonação;
4) Certas consoantes sonoras (como [g]) produzem tensão nos músculos da garganta.
Greenberg (1983: p.100) nos diz ainda que a articulação “assim chamada de ‘[d] suave’,
apreciada por vários virtuoses da flauta doce, é na verdade um [t] surdo e levemente pronunciado.
Pelas razões acima descritas, [t] é uma articulação melhor que sua contrapartida sonora [d]”. O
autor faz a mesma comparação entre [k] e [g].
3.Considerações finais
Definimos articulação para a prática da flauta doce como uma combinação de ações dos
órgãos articuladores da boca que determinam os inícios e desfechos dos sons musicais tendo como
objetivo explicitar ou valorizar o padrão estético da obra. Podemos resumir as consoantes da
fonética portuguesa adequadas à prática da flauta doce da seguinte forma:[t] e [d] são articulações
precisas para ataques e finalizações, sendo que o [d] soa como um [t] suavemente pronunciado; [k]
e [g], combinadas com [t] e [d], proporcionam agilidade e precisão, sendo que [g] soa como um [k]
suavemente pronunciado; o [r] combinado a [t] ou [d] proporciona uma sonoridade fluida e átona
em passagens legato, gerando a combinação de sons ‘forte-fraco’ característica da música barroca;
[l] e [lh] são articulações imprecisas no ataque, mas muito fluidas em passagens ágeis em grau
conjunto, proporcionando uma sonoridade intermediária entre articulada e ligada (sem consoante);
[r] (como em “rrrua”) é utilizada para o frulato ou vibrato de língua.
É preciso dizer que todas estas consoantes são classificadas de uma forma padronizada, a
partir das normas convencionais da fonética portuguesa. Entretanto cada intérprete tem sua própria
maneira de articular na medida em que realiza pequenas variações em cada um dos pontos de
articulação (por exemplo, se a ponta da língua está mais à frente ou atrás na pronúncia do [t]). As
características físicas de cada intérprete, aliadas à suas intenções musicais, geram uma infinidade de
variantes no resultado sonoro, proporcionado ao ouvinte, felizmente, a possibilidade de desenvolver
seu senso crítico e sua estética musical.
Esperamos com este trabalho incentivar o intérprete da flauta doce a explorar em seu
instrumento as amplas possibilidades de articulações e os resultados musicais obtidos com elas.
Referências Bibliográficas
Akoschky, Judith e Mario A. Videla (1985). Iniciação à flauta doce. São Paulo: Ricordi. Vol.1.
Bismantova, Bartolomeo (1677). Compendio musicale. Ferrara: Manuscrito. Biblioteca Municipale di
Reggio Emilia, Ms Reggiani E. 41.
Frank, Isolde Mohr (2002). Pedrinho toca flauta. São Leopoldo: Editora Sinodal. Vol.1, 10ª ed.
Ganassi, Sylvestro (1535). Opera intitulata Fontegara. Berlim: Robert Lienau, 1956. Editado por Hildemarie
Peter.
Greenberg, Abraham (1983). Articulation in Recorder Playing – A Phonetic Study. The American Recorder
24, nº3 (August), 99-101
Mahle, Maria Aparecida (1959). Primeiro caderno de flauta-block. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale.
Monkemeyer, Helmut (1976). Método para flauta doce soprano. São Paulo, Ricordi. Parte 1. Traduzido e
adaptado por Sérgio Oliveira de Vasconcellos Corrêa.
Prosser, Elisabeth Seraphim (1995). Vem comigo tocar flauta doce! Brasília: Musimed Editora. Vol.1.
Reiss, Scott (1986). Articulation: The Key to Expressive Playing. The American Recorder 27, nº4
(November), 144-149.
Silveira, Regina Célia Pagliucci da (1982). Estudos de fonética do idioma português. São Paulo: Cortez.
Tirler, Helle (1988). Vamos tocas flauta doce. São Leopoldo: Editora Sinodal. Vol.1, 16ª ed

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